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Teko Porã para meu avô

Desenho baseado em uma foto de família. Da esquerda para a direita: Meu pai, mãe, irmão, eu, avó e avô, pais de minha mãe. Desenho baseado em uma foto de família. Da esquerda para a direita: Meu pai, mãe, irmão, eu, avó e avô, pais de minha mãe.
Esse texto é para meu vô
Nascido no interior de Minas
Lá pro rio Paraopeba acima

Em cima da bicicleta,
na beira do lago
dentro do abraço

 

Sempre que te vejo no mato, te vejo mais ativo e me pergunto se esse é o bem viver que falam? Bem viver é um pouco que nem sua posição no mapa, mas não esses de papel quadrado. Talvez um mapa mais amplo, mais sem forma que consiga pegar desde a grandura do lago até a pequenice de uma manteiga no pão molhado de café.

Paciência também é um bem viver. Teve muita quando me ensinou a andar de bicicleta e a pescar. Nesse dia, pelo que lembro, eu peguei vários com aquela vara de bambu imensa que eu não conseguia nem erguer direito e tirava o peixe da água andando pra trás, e o coitado do peixe vinha se arrastando na brita. Você ficou um tanto orgulhoso do seu chêro, como você me chama. Tanto que, na próxima vez que apareci na roça, o senhor me deu uma vara de pescar com molinete, a mais última tecnologia. Tão avançada que eu não consegui aprender, desisti logo. Acho que o senhor ficou triste, mas memórias também são bem viver.

Bem viver, acho, que é um pouco mais vivível do que dizível. Mas bate um medo de perder sem saber que tem né? Estar bem de todo e quando reparar… puff… fez burrada e lá vai tudo que se tinha gosto. E não tem jeito, na bíblia mesmo diz, e como o senhor é lido desse livro deve saber: tudo passa, até o que é bom. Especialmente isso né, parece.

Tem horas que parece escorregadio tipo gelo. Quando pensa que firma, firma demais e cai com a bunda no chão e lá se vai o momento. Mas paciência. Mas fica a dúvida sempre, e acho que quem souber dizer por bem dito ou é preso ou vende o segredo por milhão: qual seria o caminho pra esse bem viver?

Também penso isso um tanto e acho que é tipo o programa do bem estar né, todo dia de manhã a gente tem que se ver com isso, e a noite revisa. O nome ao menos muda, mas o confuso é saber diferenciar qual de qual. Vai trocando de roupa o diabo do bicho, que quem vê na rua não reconhece. E tem que tomar cuidado com os ardilosos, esses respondem no chamado mas querem dar golpe.

Às vezes olho pra trás e me pego tentando pautar o viver dos outros e quem sou eu pra querer ser o sabedor do que do que veio muito antes de mim. Só dá dor de cabeça e de barriga, ansiedade de querer saber de muito mais do que o corpo aguenta, que a família entende, que a realidade suporta. Imagina o peso. Até o corpo avisa, diz, reclama. A barriga ronca, o nariz entope, a cabeça doi de tão cheia e o pulmão fica vazio. Por vezes, te digo e espero que acredite, não sabia nem onde estava, mas sabia a solução para meus problemas todos. Tinha o jogo claro, mas nem sabia quanto custava a conta de luz, ou o aluguel. Pois que clarezas são essas que não enxergam nem um palmo?

E essa palavra que tirei e repeti e repeti, bem viver, não é minha, trouxe dos Guarani. Eles, que são muitos tantos, escondidos de propósito, simplificados na mesma moda, tem sua própria expressão para isso: Teko Porã. E essa expressão abarca o que às vezes a tensão esquece, o território, o tempo, a rotina, a ancestralidade, a cultura, tudo que se pensa pois é de outra natureza. É como verbo, abraça muito, mas também é frágil.

Ando para cá e para lá, ando ontem, hoje, de casa para o trabalho, de ônibus e de carro, feliz e triste. No mesmo jeito, tentar andar com a perna quebrada é duro; andar com medo de ser morto também.

Comer é fácil, amo um doce, uma lasanha, um pão de queijo. Mas tente comer com a cabeça cheia. A barriga pode tá vazia que for, mas dependendo da cabeça… não toca no prato, até o repulsa.

Saúde é isso também, mas é o verbo dos verbos. Se ajuda ou facilita a vida tê-la tão escondida entre os músculos, no ar, no caminho pro trabalho, nos amigos… talvez não seja questão para se fazer. A resposta tá em outro registro, às vezes nem dentro da gente.

Se aprendi algo nesse meu tempo em SP enquanto participo da Rede Indígena é que às vezes o que é obvio não é claro. A culturao territórioa pessoa indígena se recusou a pagar o aluguel pela terra que já era deles e cortaram a luz. Assim, então, o que era óbvio ficou escondido no escuro. E o escuro dá medo, “quem sabe tem escorpião”, você me alertava sempre que entrava no quartinho com as tranqueiras. Assim tudo fica escuro, até o céu, até o sol. E a única luz que tem, mais faz perder do que achar, pense a confusão. Não tem sábio que não caia e confunda a luz do helicóptero com estrela, nem que por um instante. Mas ter fé é importante, vai que é.

O Marco Temporal é helicóptero no céu, familiar e de longe. Mas pergunte se é Vênus, Saturno, Três Marias? Seguindo essas até Colombo se perdeu e findou num genocídio.

Como a gente gosta de música, o senhor deve entender. Pra mim, no fundo, no fundo, bem viver é saber lembrar de onde veio. O Tom da música está na primeira linha, mas é essencial até o final, especialmente quando a gente se perde.

 

 

Sou Marcus Arcanjo, Estudante de Psicologia da USP. Sou de Belo Horizonte, MG, nascido em 2003. Moro atualmente em São Paulo desde 2022.

Esse texto faz parte de um projeto de Ensino vinculado à Rede de Atenção à Pessoa Indígena, sob orientação de Danilo Silva Guimarães.