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Nota da Rede Indígena contra a intolerância religiosa

Atitudes de intolerância religiosa contra mulheres indígenas, guardiãs de um legado de profundo conhecimento sobre este território, ainda são frequentes no Brasil. A esse respeito, nos posicionamos criticamente, enquanto serviço universitário implicado com a saúde e bem estar, bem como com a construção de conhecimento capaz de dialogar com as divergências. Manifestamos nossa preocupação diante de atitudes de intolerância que visam a aniquilação da diferença, pois perpetuam valores alinhados a perseguições e extermínios que marcaram violentamente a história deste território que coabitamos.

A ocidentalização do conhecimento está relacionada historicamente a processos de colonização e dominação, que tanto serviram materialmente ao acúmulo de capital quanto, no campo das ideias, à consolidação de um ideal hegemônico, subalternizando outras fontes de conhecimento enquanto suspeitas ou irrelevantes. Essa hegemonia forjada no campo do conhecimento e da religião, se ergueu às custas de um racismo/sexismo epistêmico e religioso que fundamentou a perseguição e extermínio de outros conjuntos de conhecimento, originários de corpos e territórios colonizados, frequentemente sob a acusação de “magia” ou “bruxaria”, ou seja: um conjunto de práticas e conhecimentos supostamente ilegítimos ou até perigosos, uma ameaça a ser combatida. Assim, a ocidentalização do conhecimento se ergueu às custas de genocídios e epistemicídios – ou seja, o extermínio de conhecimentos em decorrência do extermínio de pessoas. Essas atitudes de “conquista”/extermínio eram praticadas contra povos originários de territórios colonizados bem como contra mulheres ocidentais que, acusadas de “bruxaria”, eram queimadas vivas. Essas mulheres detinham um vasto conhecimento corporificado, eram como bibliotecas vivas de um legado de conhecimento brutalmente incendiadas. Bem como eram grandes articuladoras das relações comunais no território, de tal modo que a perseguição e extermínio dessas mulheres convenientemente abria espaço para a ascensão da propriedade privada e do acúmulo de capital, cujo marco histórico foram os Cercamentos. Por sua vez, o marco histórico da colonização deste território também envolve a parceria de genocídios e epistemicídios, pois os últimos operam, no campo das ideias, o mesmo projeto de extermínio que o primeiro materializa violentamente.

Frequentemente, os casos de intolerância religiosa – mesmo que irrefletidamente – reproduzem a lógica de racismo/ sexismo epistêmico que fundamentam os epistemicídios, lidando com a divergência de idéias – no campo religioso – enquanto uma ameaça a ser combatida e, por vezes, até mesmo exterminada com violência, infelizmente.

Assim, questões de intolerância religiosa concernem também ao debate sobre a construção de conhecimento. A Rede Indígena, enquanto um serviço universitário situado no campo da psicologia, tem o compromisso ético de se posicionar criticamente diante de atitudes de intolerância contra mulheres indígenas, guardiãs de um vasto legado cultural deste território, sendo acusadas de “bruxaria”, o mesmo argumento que historicamente serviu de justificativa para a violência sistemática dos processos de colonização e dominação de corpos e territórios. Ao olhar para a história e a memória dos que vieram antes de nós, podemos traçar outros caminhos possíveis para a vida, escolhendo não perpetuar valores de origem colonial em atitudes irrefletidas que, infelizmente, se manifestam com frequência em atos de intolerância religiosa.

Segue a nota de denúncia ao crime de intolerância religiosa produzida pelo Conselho da Kunanague Aty Guasu – Grande Assembleia Das Mulheres Kaiowa e Guarani, que inspirou esta publicação:

Kunangue ATY guASU DENUNCIA o Crime de intolerancia religiosa_Tortura contra as nhandesys (1)

 

Fontes/ Sugestões de Leitura:

Coleção Psicologia, Laicidade e as Relações com a Religião e a Espiritualidade (2016) São Paulo. 1ª Edição Conselho Regional de Psicologia SP – CRP 06 (Vol. 1, 2 e 3).

Disponível em: https://www.crpsp.org/impresso/index?categoria=1&page=2&per-page=40

Federici, S. (2017/2004) Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante

Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25-49.

Quijano, A. (1992) Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena. 13 (29).pp. 11-20.