Compartilhamento de caminhadas com psicóloga Marília Marra: 3° encontro aberto de formação do Núcleo Justiça e Rede Indígena
Dando seguimento aos encontros entre a temática da Justiça e a Rede indígena, neste 17 de maio chegamos à colaboração da psicóloga Marília Marra, que compartilhou a apresentação de seu percurso profissional e com a Justiça Restaurativa, na perspectiva de construções conjuntas à Rede Indígena.
Raízes estudantis
Desde a faculdade interessada pelos temas da psicologia Social, e imaginando que espécie de trabalho seria possível nesse campo, vivenciou a maternidade durante a faculdade, enveredando pela psicologia clínica, especialmente infantil. Passado algum tempo, pós um mestrado, prestou concurso e encontrou o campo para o exercício da psicologia social que buscava nos princípios acadêmicos ao ser admitida na Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP).
Primeiros tempos da DPE-SP
Dentro da instituição encontrou desde logo algumas dúvidas: o que é o psicólogo diante do direito? qual sua importância? qual a relação com a instituição e com o jurídico?
Nos quadros da psicologia da DPE-SP desempenhou diversas funções, especialmente apoio a pessoas fragilizadas que precisavam de atenção qualificada, pessoas que chegavam ao atendimento em estado de delírio, laudos para defesa, em casos de destituição do poder familiar, e aí, na contenção de graves injustiças, por exemplo, de desconstituição familiar por falta de recursos financeiros.
Nessas atuações familiares o laudo do CAM vinha contar a história da negligência do Estado na trajetória da família, uma atuação que ao lado das outras parecia um apoio ao jurídico.
Diferente foi a atuação em composição extrajudicial, recebendo conflitos e pessoas que imaginavam que encontrariam alguma resposta apenas mediante um processo judicial, e viam abrir-se a possibilidade de uma solução não processual-judiciária.
Por exemplo, em um processo de guarda, a atuação visa construir a autonomia das pessoas e família, para fazer justiça a seus próprios conflitos.
Assim explicamos às pessoas: no judiciário, cada um é ouvido, há o juiz, mas a solução é muito predefinida, pouco flexível à soluções outras que contemplem melhor as necessidades das pessoas. Na autocomposição pode ser diferente, em um ambiente de mais diálogo e possibilidades.
Dessa maneira é que nasce o contato com a Justiça restaurativa, construída no contato com as pessoas e o diálogo, dentro de uma instituição que viria legitimar e propiciar um equilíbrio entre as partes para tornar o diálogo possível.
Poderíamos estar no CRAS, na esquina de cada bairro, não necessariamente no grande aparato judiciário. Mas isso são elucubrações de um mundo utópico que acredito que um dia talvez chegue.
Segunda fase na Defensoria Pública
Em 2014 sai do atendimento “da ponta” em contato com os usuários, e passa ao apoio concentrado a todos os psicólogos da DPE, no Estado todo. Desta maneira pode desenvolver uma visão mais distante porém também mais estratégica. Inicia também sua participação no grupo de pesquisa de justiça restaurativa da DPE-SP, um grupo que se auto-organizou na instituição a partir de um seminário sobre o tema em que diversas pessoas ligadas à DPE estavam presentes. Inicialmente um grupo informal de estudos, que chegou ao seu conhecimento e em breve se pôs a participar.
Paralelamente vê nascer a necessidade das pessoas da DPE também se auto cuidarem, vez que o contato diário com diversas pessoas em situação de vulnerabilidade é uma fato de imenso impacto psicológico, e assim juntos, numa proposta de autocuidado, seria possível o fortalecimento.
Terceira fase na DPE-SP: Um núcleo prático de JR
Em 2016, passa a compor um novo setor na DPE-SP, atento aos conflitos internos, à saúde do trabalhador e afins. Organizado estava o início de um órgão aplicado interno de justiça restaurativa.
Da metodologia habitual de JR, são realizados círculos (conflitos por exemplo sobre distribuição de tarefas), são realizados atendimentos diretos, mediações de casos específicos e, em 2018, a construção da política de enfrentamento do assédio moral, sexual e discriminação. Sem entrar no mérito, o setor (CADI) realiza a escuta e o acolhimento, e se possível, o procedimento restaurativo, sem prejuízo também da corregedoria disciplinar.
A DPE tem 67 Unidades e presta o CAM suporte externo a todas, ao mesmo tempo que presta aos conflitos internos o CADI (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Institucional) o atendimento.
Alguns aprendizados e a continuidade da caminhada
Da experiência relatada, destaca a percepção do sentimento de Justiça nas pessoas que buscavam o sistema judiciário, que nem sempre era atendido, e muitas vezes piorava. Uma insatisfação que, naturalmente, chegava com frequência ao setor de psicologia da instituição.
Justiça, portanto, passa a ser visto também como um sentimento que a pessoa pode resgatar através de um processo de diálogo e troca, que possibilita a construção do “justo”. A metodologia da JR aponta muito mais uma saída às pessoas que visam encontrar um sentimento de Justiça do que outras formas.
Aprendemos na experiência do CADI, por exemplo, como atuar quando nem mesmo um procedimento disciplinar é capaz de resolver diversas violações graves de direitos, violações que muita vez se revelam em uma complexidade interpessoal inatingível pelo processo meramente jurídico.
Já a Justiça Restaurativa perante o Estado, eis algo ainda mais desafiador de se pensar. Como sentar com o “Estado” em um círculo?
Esse é um grande desafio para a JR, e olhar para as questões estruturais de violações de direitos. Que maneiras e dispositivos existiriam para fazê-lo?
Refletindo sobre o respeito aos modos de vida, e pensando na colega que começa a estudar os rompimentos de vínculos familiares em pessoas indígenas, traz a psicóloga sua experiência com famílias não-indígenas.
Narra o caso de uma pessoa que teve sua guarda retirada porque o pai sustentava o lar com uma criação de porcos. Algo que tem muito a ver com o modo de vida e a diversidade de padrões. O que se fazia nesse caso era escrever, tentar contar a história das pessoas do ponto de vista da própria cultura para tentar incluí-las no processo.
Algo inspirado em Walter Benjamin, algo como “contar a história dos vencidos”. Pouca eficiência na maior parte dos julgados diante do judiciário. Contar e registrar essas histórias são um caminho, uma possibilidade mas não necessariamente trazem mudanças efetivas para a vida dessas pessoas.
Continua-se, portanto, a buscar, pensar outros dispositivos com mais efetividade diante da violência do Estado.
Nota redigida por Augusto Pessin